COSTUMES BÍBLICOS: Estudando os Evangelhos


Estudando os Evangelhos

Dos Evangelhos, o fragmento
mais antigo de que dispomos -
com um pequeno trecho de Jo 18 -
data de cerca de 125/130 d.C.
Encontra-se na biblioteca
 John Rylands
Estudando os Evangelhos

As pessoas têm estudado os Evangelhos de maneiras diferentes, e isto quase que desde o momento em que foram escritos.
Os primeiros comentários foram escritos no século 2, explicando e aplicando os Evangelhos à vida dos primeiros cristãos.
Os Pais da Igreja discutiram os méritos dos vários enfoques - as interpretações literal, espiritual ou alegórica.
Ao tornarem a Bíblia acessível ao povo na sua própria língua, os reformadores do século 16 perceberam que, para ela ter autoridade e ser útil na igreja, seria necessário torná-la compreensível pelo uso de todas as ferramentas, métodos e abordagens possíveis.
Durante o século 19, os grandes avanços feitos no estudo crítico-literário de textos antigos começaram a ser aplicados também aos Evangelhos.
A grande quantidade de estudos sobre os Evangelhos no século 20 parece indicar que não existe nenhum outro conjunto de documentos que tenha sido submetido a tanta pesquisa e análise, com uma ampla variedade de métodos disponíveis hoje em dia.

O que são os Evangelhos?

Antes de podermos entender uma mensagem, precisamos saber o que ela é. Um receptor de rádio não consegue decodificar imagens de televisão! E o mesmo acontece com textos. Não ouvimos um conto de fadas da mesma forma que um noticiário, nem interpretamos lendas como se fossem história.
Infelizmente, algumas pessoas lêem os Evangelhos como lendas, enquanto outros os tratam como um livro moderno de história. Ambas as abordagens resultarão em interpretações distorcidas. Devemos interpretá-los da mesma forma que eles foram entendidos por aqueles que os escreveram, produziram, leram e ouviram pela primeira vez.
Embora os Evangelhos pareçam "histórias sobre Jesus", os estudiosos da Bíblia no início do século 20 afirmaram que não eram biografias de Jesus. Afinal, eles não dizem nada sobre o caráter ou a aparência física de Jesus. Também nada informam sobre o restante de sua vida, nada que vá além de seu breve ministério - com destaque para a última semana, quando ele foi morto e ressuscitou.
Porém, embora a biografia moderna procure abranger toda a vida de uma pessoa e analisar sua formação e personalidade, as "vidas" escritas no mundo antigo (e a própria palavra "biografia" só surgiu por volta do século 9) eram muito mais curtas. Autores greco-romanos descreviam sua compreensão de determinada pessoa através daquilo que essa pessoa fez e disse, destacando sua morte como revelação final do seu caráter.
Os Evangelhos, que relatam aquilo que Jesus "fez e ensinou" (At 1.1), que dão destaque à pessoa de Jesus, e que apresentam uma extensa narrativa da "Paixão" de Cristo, são muito semelhantes em forma e contudo às "vidas" escritas no mundo antigo. Portanto, devemos estudá-los, dando atenção à pessoa de Jesus, e usar todas as ferramentas literárias possíveis para ver como cada autor de Evangelho pinta o seu retrato de Cristo.

O que o texto está realmente dizendo?

Depois de sabermos o que o texto é, precisamos descobrir o que ele diz, deixando de lado idéias modernas de impressão e publicação.
Quanto ao tamanho, os Evangelhos ficam entre pouco mais de onze mil palavras (Marcos) e dezenove mil palavras (Lucas), o que equivale mais ou menos ao que cabia em um único rolo de cerca de 10 m de comprimento.
Até os escribas mais cuidadosos podiam cometer erros ao copiá-los à luz de lamparina! Porém, há mais de 5.000 manuscritos contendo todo o NT ou uma parte dele, muito mais do que os manuscritos disponíveis para a maioria dos outros textos antigos. Através de cuidadosa comparação desses manuscritos à luz dos métodos empregados pelos escribas, os especialistas em tais estudos textuais (a "crítica textual") podem estabelecer o que os textos originais diziam.
É claro que há pequenas variações aqui e ali, e as algumas traduções as registram em notas de rodapé que iniciam com "alguns manuscritos dizem..." No entanto, o texto do NT é mais bem estabelecido do que o texto dos clássicos do período greco-romano.
Como a maioria lê os Evangelhos em sua própria língua, isto é, numa tradução, é recomendável ter duas ou três boa traduções, para que se possa estudar e comparar os textos. Devemos entender o que o texto está realmente dizendo, e não o que gostaríamos que ele dissesse!

"Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar, Até ao dia em que foi recebido em cima, depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera";
Atos 1:1-2 

Como os Evangelhos foram escritos?

Hoje em dia, copiar a obra de outra pessoa é considerado plágio, ou até mesmo roubo. Este é outro conceito moderno. Para os antigos, seguir o registro de um predecessor era, não só um elogio, mas uma forma de aceitar a sua autoridade. Assim sendo, Lucas diz que entre suas fontes estão testemunhas oculares, pregadores e outros escritores (Lc 1.1-4).
Uma análise rápida mostra que os três primeiros Evangelhos são bastante parecidos: quase 90 por cento dos 661 versículos de Marcos aparecem em Mateus, com cerca de 50 por cento também em Lucas. Como podem ser estudados lado a lado, estes três são chamados de Evangelhos "sinóticos", do grego syn-opt-, ver juntos. Por outro lado, menos de 10 por cento do material sinótico aparecem em João. Como podemos explicar estes fatos?
Mateus e Lucas provavelmente usaram o relato mais curto de Marcos como sua "autoridade", e escreveram com o rolo de Marcos aberto à sua frente, combinando-o com outros materiais. É claro que Marcos poderia ser uma abreviação posterior, mas por que ele deixaria de fora o material encontrado nos outros Evangelhos?
Mateus e Lucas têm em comum cerca de 200 versículos adicionais, na maioria ensinamentos de Jesus que eles inseriram em contextos diferentes. Isto sugere que eles dispunham de uma coleção de afirmações de Jesus, perdida desde então, que chamamos de "Q", do alemão Quelle, "fonte".
Além disso, Mateus e Lucas têm, cada um, seu próprio material especial.
Em análise do texto, chamada de "crítica das fontes", revela como cada evangelista escreveu seu relato sobre Jesus. Embora o Evangelho de João contenha material que aparece também nos outros Evangelhos (derivado talvez da tradição oral), ele foi composto independentemente dos outros três.

Que tipos de histórias eles contêm?

Os Evangelhos são compostos de pequenas histórias distintas, contadas em poucas palavras (poucas centenas de palavras para cada uma delas), e que são ligadas entre si para formar uma narrativa.
Marcos começa seu Evangelho com vários acontecimentos do ministério de Jesus no cap. 1, seguidos por uma coleção de histórias de conflitos com autoridades religiosas nos caps. 2--3, e uma série de parábolas no cap. 4.
A "crítica das formas" analisa os diferentes tipos de material que aparece nos Evangelhos e mostra como eles contêm histórias de milagres, curas, parábolas, ditos, e "histórias de pronunciamento" que terminam com a frase memorável de Jesus (veja como Mc 2.28 conclui 2.23-28). Isto nos ajuda a entender como histórias individuais foram preservadas e usadas na igreja primitiva.
João nos conta que os escritores dos Evangelhos tinham excesso de material, obrigando-os a fazer uma seleção (Jo 20.30-31). Lucas escreveu um relato "ordenado" (Lc 1.1-4). A crítica das formas revela que esta "ordem", seguida pelos autores em sua reunião de material sobre o que Jesus disse e fez, é mais lógica do que cronológica.

Os escritores dos Evangelhos eram editores ou autores?

Após a plicação da crítica das formas de estudos das pequenas unidades dos Evangelhos, prática que se difundiu na primeira metade do século 20, os estudiosos passaram a se concentrar na maneira como cada escritor de Evangelho (o "evangelista") elaborou a sua história.
Se Mateus e Lucas se basearam em Marcos, a maneira como formularam esse material de Marcos revela os interesses específicos de cada um deles. Não é muito diferente dos jornais de hoje, que contam um mesmo fato sob enfoques diferentes, refletindo os interesses de seus editores. O trabalho de edição (tanto em português, como também em alemão, Redaktion). Assim sendo, os alemães deram a esse estudo do trabalho editorial dos evangelistas o nome de "crítica da redação" (em alemão, Redaktionsgeschichte = "história da redação"). Este tipo de estudo comparativo revela que Mateus está interessado no relacionamento entre a igreja e o judaísmo, ao passo que Lucas escreve para leitores de origem gentílica, em sua maioria.
Quando os evangelistas passaram a ser vistos como editores e teólogos, puderam ser estudados como autores que apresentam sua compreensão da pessoa de Jesus de forma bem particular. Como Lucas disse, reconhecendo que outros já haviam escrito sobre Jesus, "igualmente a mim me pareceu bem" escrever-te (Lc 1.3)! Com frequência estudamos pequenos trechos de 10 ou 20 versículos dos Evangelhos; o estudo da redação nos estimula a colocarmos cada seção dentro do contexto mais amplo do Evangelho visto como um todo.

Diferentes tipos de crítica literária

Hoje cada vez mais se usa uma grande variedade de métodos de natureza crítico-literária para nos ajudar em nossa compreensão dos Evangelhos.
A "crítica da composição" verifica como cada evangelista organizou o seu material - por exemplo, osa cincos grandes blocos de ensinamentos de Jesus em Mateus (caps. 5--7; 10; 13; 18; 23--25) ou o arranjo mais geográfico que aparece em Lucas, com três etapas: Galiléia (Lc 4.1--9.50), viagem para Jerusalém (Lc 9.51--19.27) e ministério em Jerusalém (Lc 19.28--24.53).
A "crítica da narrativa" estuda como a história ou narrativa como um todo funciona, com seu enredo, personagens, conflito, ironia, temas e padrões.
Abordagens estruturalistas analisam a estrutura de episódios para ver como eles realmente funcionam, e examinam a estrutura mais profunda de todo um livro.
A "crítica da retórica" considera o uso que os evangelistas fizeram de técnicas de oratória antiga para persuadirem os seus leitores da verdade sobre Jesus.
Abordagens como estas, juntas, mostram como esta fascinante área do estudo literário dos Evangelhos revela a riqueza do relato de cada evangelista.

Para quem os Evangelhos foram escritos?

Todos os livros são escritos para um determinado público. Como nem todos podiam ler naquela época, os livros antigos eram divulgados através de leitura pública, feita no contexto de uma festa ou de outra reunião.
Com certeza os Evangelhos foram lidos mais em voz alta e no culto público (ou em outras reuniões) do que em particular, por uma só pessoa isolada das demais.
As "análises sociológicas" descrevem o nível social ou educacional do público alvo de cada Evangelho, e reconstroem o tipo de igreja para a qual Mateus escreveu, ou a "comunidade joanina" que se pode abstrair da discussão com "os judeus" no Evangelho de João. Isto pode acabar numa circularidade, ou seja, reconstrói-se a comunidade à luz do texto e, depois, interpreta-se o texto à luz da comunidade que se reconstruiu!
Recentemente, as atenções passaram da comunidade para o tipo de leitor ou ouvinte implícito em cada Evangelho. A "crítica resposta do leitor" examina como cada Evangelho atinge seu efeito específico nas pessoas.

Podemos nos atrever a "criticar" os Evangelhos?

Algumas pessoas ficam preocupadas ao verem todas essas diferentes "críticas" sendo aplicadas aos Evangelhos.
Os cristãos acreditam que a Bíblia é inspirada pelo Espírito Santo, como palavra de Deus. Não é assim que essas abordagens dizem respeito a palavras de seres humanos? Sim, isto de fato é assim. Mas Deus comunicou a sua palavra ao inspirar seres humanos a escrever e compor, ler e transmitir estas histórias - e ele pode, também, inspirar o humilde estudioso bíblico que tenta entendê-las!
Os Evangelhos não são interpretados como livros mágicos que caíram do céu. Também não se deveria esperar deles que se encaixem perfeitamente nos conceitos modernos de reportagem e formulação de textos.

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Filipenses 1:9-11

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