Jesus refuta a calúnia infame dos fariseus e dos escribas
O relato evangélico não nos deixa desfrutar por muito tempo da dulcíssima impressão da cena que precede a representação da Igreja em seu berço. Os sentimentos ruins de alguns parentes do Salvador e o ódio fanático dos fariseus vão ocasionar dolorosos incidentes. Contudo, estamos ainda no período dos grandes triunfos de Jesus, e as multidões judaicas, cada vez mais afeiçoada à pessoa dele, continuam recorrendo ao Mestre aonde quer que leve o seu zelo, não lhe permitindo descanso em nenhum momento. Somente Marcos conta o primeiro destes fatos dolorosos, mas em termos tão concisos que é difícil esclarecer o significado de todos os pormenores.
Certo dia, porém, quando Jesus entrava em Cafarnaum com seus apóstolos, para partir em seguida em outra direção, a casa em que se hospedava foi invadida por uma enorme multidão, que já se encontrava ali há muito tempo, ávida por ouvir sua palavra e solicitando sua poderosa bondade. Por conta disso, nem Jesus nem os apóstolos puderam dispor de um tempo para ingerir algum alimento. Vejamos o que diz o texto em Marcos 3.20,21: E foram para uma casa. E afluiu outra vez a multidão, de tal maneira que nem sequer podiam comer pão. E, quando os seus parentes ouviram isso, saíram para o prender, porque diziam: Está fora de si.
A expressão sequer podiam comer pão, usada pelo evangelista, é um hebraísmo que indica que tanto no Oriente como entre nós, ocidentais, o pão constitui o principal alimento (Gn 3.19; 31.54; 43.16; Êx 2.20; Jr 41.1). Em outra ocasião, o ajuntamento de pessoas colocou Jesus e seus discípulos em situação parecida (Mc 2.1,2), ainda que menos complicada.
Incidente semelhante há de se repetir por várias vezes (Mc 6.39) durante todo o período da vida pública do Salvador, que não ouvia outra voz senão a que vinha do céu e cumpria com alegria suas próprias palavras: A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra (Jo 4.34).
Alguns, a quem o evangelista Marcos se refere como parentes de Jesus, que poderiam ser familiares ou até simples discípulos, inteirados do que estava ocorrendo, apareceram de repente, com o propósito de apoderar-se de Jesus à força e lavá-lo consigo. Para justificar esta intervenção violenta, se atreveram a dizer: Está fora de si (Mc 3.21) - expressão que, na tradução da Vulgata ultrapassa o significado grego, que não indica necessariamente uma loucura plena. Como explicar semelhante cena?
Tinha razão o sério Maldonado quando dizia que admitir um sentimento de piedade nessa situação, de certa maneira louvável, porém indiscreto, longe de facilitar a interpretação, acrescenta dificuldade.
Assim, alguns antigos comentaristas põem a ultrajante frase está fora de si nos lábios dos fariseus e dos escribas, inserindo-a no lugar de seus parentes. Outros dão ao verbo diziam o significado impessoal se dizia, que não é totalmente estranha a Marcos (Mc 3.2). Mas a exegese atual rejeita justamente essas interpretações, que violentam o texto e não conduzem a lugar algum. Antes, deixando o significado natural do texto, esforçam-se simplesmente em explicar a fórmula, algo ambíguo, seus parentes.
Essa expressão, segundo temos dito, pode ser uma referência aos próprios discípulos de Jesus, em um sentido mais amplo, ou aos membros da família dele. A primeira hipótese, admitida por vários exegetas, protestantes ou racionalistas, tornaria a situação menos odiosa, e tem em seu apoio o próprio texto do relato, que nos mostra os recém-chegados saindo de suas casas para se aproximarem de Jesus e se apoderarem de sua pessoa.
Pois bem, se este incidente ocorreu em Cafarnaum, nada prova que ali houvesse membros da família de nosso Senhor Jesus Cristo. Seus parentes viviam em Nazaré, e não daria tempo para que chegassem de tão longe. Mas, não obstante isso, podemos, com a maior parte dos intérpretes antigos e contemporâneos, interpretar seus familiares como sendo a família do Salvador, sem ir contra o pensamento do evangelista. Temos a condição de distinguir entre alguns vulgares insultadores e a mãe de Jesus e seus irmãos, que logo hão de fazer-lhe uma visita afetuosa (Mt 12.47-50; Mc 3.32-35;Lc 8.20,21).
Não nos diz expressamente João (7.5), mais adiante, que nem os irmãos de Jesus criam nele, não aceitavam seu ministério, ou quando muito o entendiam de modo bem distinto? Por mais triste que seja, não deveria causar assombro o procedimento exposto por Marcos, ainda que de forma extremamente reduzida, nem o pretexto injurioso com que alguns tratam de legitimar o fato.
Seja como for, não consta que aqueles homens, apesar de sua linguagem rude, tivessem se aproximado de Jesus com intenções hostis. Inquietava-lhes toda aquela agitação em torno do Mestre. Ainda mais porque sabiam que se haviam levantado muitos inimigos contra Jesus e, por conta disso, temiam que o descontentamento desses inimigos pudesse recair sobre toda família do Salvador. Toda essa situação os deixou perplexos, e é possível que, de comum acordo, tivessem preparado esse expediente extravagante, para livrar mais facilmente Jesus dos perigos que o ameaçavam.
Pouco depois, conforme Mateus e Lucas mencionam (Mt 12.22,23; Lc 11.14), levaram a Jesus um endemoninhado cego e mudo. Jesus expulsou o demônio e, prontamente, o enfermo recobrou a visão e a fala, já que, nesse caso, a cegueira e a mudez eram motivadas pela possessão demoníaca, enão por doenças naturais, físicas.
Assim, foram operados, ao mesmo tempo, três milagres. Esta libertação teve muitas testemunhas, que puderam comprová-la. E toda a multidão se admirava (Mt 12.23a), observa energicamente Mateus, citando algumas exclamações das pessoas: Não é este o Filho de Davi? ou seja, o Messias?
Contudo, a multidão, não conseguindo resolver uma situação tão delicada, permanecia indecisa, sem atrever-se a responder afirmativamente, porque Jesus, apesar de sua santidade, de seus milagres e de poderosa doutrina, não se enquadrava na falsa idéia que seus compatriotas haviam formado do redentor de Israel.
Alguns fariseus ou escribas, infiltrados entre os ouvintes - vários deles tinham vindo expressamente de Jerusalém para espiar e criticar Jesus -, cegos de ódio, sem consciência, em vez de extrair do tríplice milagre uma conclusão favorável ao pregador, não se envergonharam de proferir contra Jesus uma acusação insensata, que era, ao mesmo tempo, uma calúnia infame: Este não expulsa os demônios senão por Belzebu, príncipe dos demônios (Mt 12.24).
Com essas palavras, podemos perceber que eles não estavam negando o milagre, por mais vantajoso e fácil que isso lhes teria sido; antes, seu objetivo era acusar Jesus de impostor. A interpretação que deram, se fosse aceita, lançaria por terra a autoridade, cada vez maior, de Jesus.
De fato, nosso Senhor possuía poder sobre os demônios, mas, segundo aqueles homens perversos, o poder de Jesus provinha do próprio príncipe dos demônios, e não de Deus. Quanto mais violenta fosse a acusação, maior probabilidade tinha de provocar nas multidões, sempre crédulas, o efeito moral que os caluniadores esperavam.
Hebrom, cidade do tempo dos patriarcas na qual Herodes realizou muitas obras arquitetônicas |
Não é relevante a discussão que causou o nome de Belzebu, cuja pronúncia, origem e significado exato são incertos. Basta-nos dizer que era um apelido desdenhoso com que os judeus designavam ironicamente Satanás. Em nenhuma outra parte da Bíblia, além dos evangelhos, esse nome é aplicado ao demônio.
Se aceitarmos a ortografia Beelzebud - ou ainda Beelzebûd - na Vulgata, na versão siríaca e em alguns manuscritos gregos, este nome significaria deus das moscas, designação irônica de um ídolo adorado pelos antigos filisteus de Ecrom (2Rs 1.2,3). Mas como na maior parte dos manuscritos gregos se prefere ler Beelzebul, o sentido então seria senhor do lixo, do esterco; ou, segundo outros, ainda que com menos probabilidade, dono da habitação (infernal). Em qualquer hipótese, era um apelido injurioso que se aplicava a Satanás enquanto príncipe de todos os anjos maus.
O divino Mestre, cuja paciência era tão grande quanto a sua misericórdia, nem sempre respondia às injúrias lançadas contra ele por seus inimigos, mas essa acusação de agora era tão grave, tão monstruosa, que não podia deixá-la sem resposta imediata. Se o povo chegasse a acreditar que tinha fundamento, toda a obra messiânica estava em sério perigo. Transformar em instrumento e emissário de Satanás aquele a quem Deus havia enviado tão poderosa e ostensivamente como Messias?! Jesus recebendo seu poder milagroso do príncipe das regiões infernais?! Como se calar diante de ultraje tão pérfido? Jamais.
Jesus refutou, pois, a calúnia, e fez isso com exata alegação, cujo vigor, sabedoria e clareza são proverbiais. Todas as qualidades que temos admirado em seus discursos e em suas respostas encontramos reunidas aqui: a doçura e a humildade, jamais comprometidas por alguma ofensa pessoal, nem ainda pelo ultraje mais desonroso; o temperamento tranquilo e sublime, que não devolve injúria por injúria; a justa severidade de juiz, aliada ao amor que instrui e persuade; a plenitude de sabedoria, que em quaisquer circunstâncias descobre os segredos mais ocultos dos corações e declara a verdade com poder penetrante; e, por fim, a majestade de sua pessoa, que se manifesta em todas as coisas.
Os três sinópticos nos conservaram este confronto (Mt 12.27-37; Mc 3.23-30; Lc 11.17-28). Marcos e Lucas, de forma abreviada. Mateus, com textos mais amplos, os quais citaremos conforme sua redação. Consta de duas partes: na primeira, Jesus se mantém na defensiva e desvia a odiosa hipótese de seus adversários, opondo-lhes argumentos irrebatíveis, que ora extrai da razão, ora da experiência. A segunda, investindo vigorosamente contra seus caluniadores, manifesta-lhes a culpa de que são réus e, por conseguinte, o castigo eterno a que se expõem.
Os escribas e os fariseus não haviam ousado proferir suas injúrias diante do próprio Jesus, como haveriam de fazer em Jerusalém (Jo 8.48-52). Antes, lançaram suas palavras ultrajantes do meio da multidão. Mas Jesus teve conhecimento da atitude deles de modo sobrenatural (Mt 12.25; Lc 11.17). E, como sempre, intrépido e franco, chamou seus caluniadores para perto de si, para redargui-los cara a cara, na presença de todos os ouvintes.
Eis a primeira parte de sua réplica. É uma proposta, conforme observa Marcos, quase inteiramente em forma de parábola; ou seja, em linguagem figurada e em imagens, que lhe dão mais força ainda.
Jesus, porém, conhecendo os seus pensamentos, disse-lhes: Todo o reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá.
E, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si mesmo; como subsistirá, pois, o seu reino?
E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam então vossos filhos? Portanto, eles mesmos serão os vossos juízes.
Mas, se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, logo é chegado a vós o reino de Deus.
Ou, como pode alguém entrar na casa do homem valente, e furtar os seus bens, se primeiro não maniatar o valente, saqueando então a sua casa?
Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha. (Mateus 12:25-30)
E, chamando-os a si, disse-lhes por parábolas: Como pode Satanás expulsar Satanás? (Marcos 3:23) - pergunta Jesus, de acordo com o segundo evangelho. O príncipe dos demônios guerreando contra si mesmo é uma tremenda contradição, é um absurdo! Com efeito, é lei histórica, demonstrada pela experiência diária e por assinalados exemplos, que um reino, uma família e uma organização moral não podem subsistir se todas as suas partes não estiverem estreitamente unidas entre si. Se ocorre uma divisão e, pior ainda, caso se levante uma guerra interna, a ruína é certa. O próprio Satanás e seu império não escapam dessa lei. Logo, expulsar os demônios em nome de Beelzebu não é mais do que um jogo de palavras, uma expressão sem sentido, puro sofisma dos inimigos de Jesus.
Jesus empregou outro argumento igualmente irrefutável, extraído da atitude dos exorcistas judeus: E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam, então, os vossos filhos? Os filhos, ou seja, os discípulos dos fariseus (uma expressão análoga àquela filhos dos profetas, que se encontra frequentemente nos livros históricos do Antigo Testamento), também tentavam expulsar o demônio do corpo dos possessos, e acontecia, em muitos casos, que suas tentativas tinham um efeito feliz. O Talmude menciona as fórmulas, às vezes mágicas e supersticiosas, com que se realizavam estes laboriosos exorcismos. Será que os fariseus também pensavam que seus mestres eram aliados de Satanás? Muito pelo contrário, admiravam-nos e felicitavam-nos por suas vitórias. Por que então esta parcialidade, esta irritante injustiça com respeito a Jesus?
Dos dois argumentos que precedem, nosso Senhor manifesta duas consequências. Diz que não recebeu seus poderes de Satanás, mas foi o próprio Deus, seu Pai celestial, quem lhe conferiu estes poderes. E mais: se o reino de Satanás começa visivelmente a desmoronar e caminha diretamente para a ruína, segue-se que o reino de Deus, o reino messiânico, já é uma realidade em Israel.
Em seguida, Jesus apresenta uma terceira prova em forma de uma breve, porém dramática parábola, por meio da qual descreve o demônio como um terrível guerreiro, armado dos pés à cabeça, que monta guarda à porta de sua casa. Para desarmá-lo, vencê-lo, acorrentá-lo; para apoderar-se de sua casa, transformada em fortaleza, e apossar-se do tesouro ali amontoado, é preciso um guerreiro mais forte que ele. Este mais forte que desaloja Satanás e arrebata seus despojos é o próprio Jesus, como bem testificam os fatos. Como, então, aqueles homens ousaram dizer que Jesus é criado e servo de Satanás?
Escavações no teatro de Cesaréia de Filipo, cidade visitada por Jesus (Mt 16.13) |
As duas palavras de Jesus - Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha (Mt 12.30) - contêm uma grande advertência. Havia entre o auditório, como em toda a Galileia e em toda a Palestina, muitas almas vacilantes e indecisas, que, impressionadas com os milagres, as pregações e a santidade de Jesus, mas gravemente influenciadas também pela hostilidade que lhe demonstravam os líderes espirituais da nação, não se decidiam por tomar nenhum partido. Jesus, então, previne-lhes contra esta indiferença perigosa, advertindo-lhes que a neutralidade com respeito a ele era impossível e, pior ainda, culpável.
Em questões de princípios - e de princípios que em nenhuma época da história haviam sido tratados antes - a indiferença é considerada oposição. Na guerra sem trégua travada entre o Messias e as potências diabólicas, não havia opção, senão estes dois extremos: estar com Cristo ou contra Cristo; juntar-se a Jesus ou unir-se a Satanás.
Depois de refutar seus inimigos, Jesus passa à ofensiva, mostrando-lhes a magnitude de seu crime e castigo inevitável que lhes aguarda, caso persistissem em seu indigno procedimento. ouçamos uma das sentenças mais terríveis:
Portanto, eu vos digo: Todo o pecado e blasfêmia se perdoará aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada aos homens.
E, se qualquer disser alguma palavra contra o Filho do homem, ser-lhe-á perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século nem no futuro. (Mateus 12:31,32)
Parece que estamos ouvindo a voz de um juiz pronunciando uma sentença. Mas, quando meditamos nos termos desta sentença, o nosso espanto cessa. Para trazer aqueles homens culpáveis a melhores sentimentos e evitar que o exemplo deles contagiasse outras pessoas, Jesus toma uma atitude enérgica. Por isso, repete, duas vezes seguidas, sua sentença.
O primeiro enunciado é mais geral; o segundo, porém, é mais concreto. Em um e outro caso, o estilo é formal, e cada palavra tem um profundo significado. A proposição geral declara que, com uma só expressão, Deus, em sua infinita misericórdia, está disposto a conceder generoso perdão a todos os pecadores que, chorando sinceramente por suas faltas e dispostos a não recair nelas, acheguem-se humildemente ao Seu Tribunal de Soberano Juiz.
O Senhor, há muito tempo, fizera esta consoladora promessa por meio de seus profetas - em particular, na expressiva passagem de Isaías 1.16-18. E agora, renovada por Cristo, ela adquire força e valor novos. Mas o Salvador acrescenta tristemente que há um pecado que não pode ser perdoado: a blasfêmia contra o Espírito Santo. E, ao rejeitar seu pensamento, torna-o ainda mais preciso.
Jesus já não fala mais em termos gerais; agora, assinala um pecado singularmente grave, conforme Mateus 12.32: E, se qualquer disser alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á perdoado. (A redação de Marcos neste ponto não é exata. Em vez de Filho do Homem, fala de filhos dos homens: Na verdade vos digo que todos os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, e toda sorte de blasfêmias, com que blasfemarem. Qualquer, porém, que blasfemar contra o Espírito Santo, nunca obterá perdão, mas será réu do eterno juízo - Mc 3.28,29). Mas apesar de tudo, ainda neste caso, é prometido o perdão, desde que a pessoa se arrependa sinceramente.
Sêneca, o maior filósofo romano, contemporâneo dos apóstolos. |
Não é sem razão que Jesus recebe aqui o título de Filho do Homem, com o qual se destaca o aspecto mais humilde do Messias, sua manifestação em forma humana.
Vendo-lhe pobre, tão semelhante exteriormente aos demais filhos de Adão, tão desprovido das qualidades altivas e heróicas que falsamente os judeus atribuíam ao libertador de Israel, eles podiam, de algum modo, ser induzidos ao erro pelo preconceito e pela ignorância. O apóstolo Pedro explica isso (At 3.17). Paulo também (1Tm 1.13). E o próprio Jesus (Lc 23.34).
Por isso, todos os pecadores, aqueles que não reconheceram Jesus como o Messias prometido ou aqueles que o injuriaram, maltrataram e blasfemaram contra ele, poderiam alcançar o perdão. Mas muito diferente é o caso dos que blasfemaram contra o Espírito Santo, porque este pecado, por sua própria natureza, opõe-se ao desejo de Deus de perdoar àqueles que tenham tido a infelicidade de cometê-lo. Mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século nem no futuro; ou seja, nem neste mundo nem no outro. É um pecado eterno (Mc 3.29), que por isso mesmo será eternamente castigado.
Contudo, por que a blasfêmia contra o Espírito Santo é um pecado imperdoável? Pela singular gravidade deste crime. Não é imperdoável da parte de Deus, ao menos diretamente, já que a bondade e o poder dele são infinitos. Sua "imperdoabilidade" parte do próprio pecador, cuja disposição de intenção é tal que torna moralmente impossível seu perdão.
A cena aqui descrita pelos sinópticos nos oferece uma explicação satisfatória desta espantosa maldição. Jesus tinha acabado de operar um sinal milagroso, por meio do qual a ação de Deus se mostrou claramente. Os fariseus e os escribas, fechando deliberadamente seus olhos à luz divina, atreveram-se a deturpar os fatos de maneira odiosa, atribuindo o milagre ao príncipe dos demônios. Por esse motivo, Jesus declarou que a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada, pelo que deu a entender que os que o insultavam haviam cometido, ou estavam prestes a cometer, o pecado irremissível.
O pecado irremissível consiste, portanto, em um endurecimento voluntário no mal; em um insigne mal, que chega a identificar a obra evidente de Deus com a de Satanás; em uma luta acirrada e premeditada contra o próprio Senhor. Nestas condições, concebe-se que o perdão seja moralmente impossível. Jesus falou desta maneira porque aqueles homens disseram: Tem espírito imundo (Mc 3.30). Com esta informação significativa, Marcos concluiu seu relato desse episódio.
Em Mateus, vemos que Jesus acrescentou:
Ou fazei a árvore boa, e o seu fruto bom, ou fazei a árvore má, e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore.
Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca.
O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau do mau tesouro tira coisas más.
Mas eu vos digo que de toda a palavra ociosa que os homens disserem hão de dar conta no dia do juízo.
Porque por tuas palavras serás justificado, e por tuas palavras serás condenado. (Mateus 12:33-37)
Local do mar Morto onde estariam soterradas no lodo as cidades de Sodoma e Gomorra, citadas várias vezes por Jesus (Mc 6.11) |
Com essa linguagem, em parte figurada, nosso Senhor enfatiza quão inconsequente era o procedimento de seus inimigos. Constrangidos pela evidência dos fatos, eles admitiram que Jesus realmente libertava os endemoninhados. Nisto, pois, eram uma árvore boa, que produzia frutos frutos excelentes. Mas, se analisados pelo que diziam, os fariseus eram também uma árvore má, que produzia maus frutos, já que tratavam Jesus como um aliado de Belzebu.
Agir desta maneira não era uma flagrante contradição e uma manifestação absurda? Vendo isso, o divino Mestre lançou sobre eles o chicote de sua indignação e, tal como seu precursor, em outra ocasião (Mt 3.7), chamou de raça de víboras aqueles malvados, em quem a injúria e a calúnia eram, por assim dizer, frutos naturais, pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca, e neles não havia mais do que maldade. Com que severidade eles não serão condenados pelo justo Juiz, que nem uma só palavra ociosa e inútil deixará impune?
Jesus ainda não tinha concluído sua analogia quando, dentre a multidão, exclamou uma mulher, levantando a voz: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste! (Lc 11.27), que era como dizer: "Oh, quão afortunada é a tua mãe!"
O vigor e a destreza da réplica de Jesus causaram profunda impressão na alma daquela mulher, que não pôde deixar de expressar sua admiração, com ingênua e terna simplicidade. Como mãe que era, sem dúvida, imaginava a felicidade e o nobre orgulho que havia de ter experimentado a mãe que havia trazido ao mundo aquele filho, tão poderoso em palavras e obras. A exclamação da mulher, tão natural e espontânea, lembra a predição de Maria, de cujo cumprimento ela fazia parte: Todas as gerações me chamarão bem-aventurada (Lc 1.48).
A esta bem-aventurança, de ordem natural, Jesus rapidamente acrescenta outra, de ordem sobrenatural. "Antes [aqui, o advérbio não só confirma a asserção que precede como também a modifica, melhorando-a], bem-aventurados os que houve a palavra de Deus e a guardam (Lc 11.28), ou seja, colocam-na em prática.
Com estas palavras, Jesus não desvirtuava o elogio tributado à mulher a quem ele havia feito a mais feliz entre as mães e que sempre fora fiel na observação da palavra divina; mas, segundo seu costume, ele se aproveitava da ocasião que se lhe oferecia para elevar seu auditório a pensamentos superiores. Mais vale, disse Jesus, as pessoas estarem unidas pela obediência às ordens divinas do que por laços de parentesco, por mais estreitos e honrosos que sejam.